Mas, antes de chegar à Ofélia, esbarrei com dois títulos que mexeram com algo além de meu apetite, dois livros que trouxeram lembranças fortes. Um, The taste of Quebec, me fez recordar de minha viagem ao Canadá há uns anos e dos amigos com quem fui encontrar por lá. Outro, Dining with Proust, me levou ainda mais longe no tempo, aos meus 20 anos, quando passei quase dois anos lendo os sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, o livro que mais amei na minha vida. Por falar nisso, é claro que os jantares (os vinhos, os amigos e, especialmente, a bagunça em torno dos testes de receitas) têm sido uma faceta bastante prazerosa de ter este blog, mas não a única. Há pelo menos dois outros aspectos que dão sabor todo especial ao projeto: as "gincanas" em busca dos ingredientes e os passeios pelas prateleiras de minha copa-biblioteca que sou obrigada a fazer em meio às minhas pesquisas. Estou gostando muito do que descubro e ainda mais daquilo que redescubro. Dêem uma olhadinha nos meus achados:
Dining with Proust
Jean-Bernard Naudin, Anne Borrel e Alain Senderens
Random House - New York
Bouillabaisse
Fish soup
Ingredients:
2kg fish pieces
(scorpion fish, gurnard, angler fish or
monkfish, wrasse or parrot fish, John Dory),
1kg conger eel,
2 whiting,
500ml (2 1/4 cups) mussels,
250 g onions,
1/2 leek (white part only),
1 stick celery,
1 fennel bulb,
2 large tomatoes,
4 garlic cloves,
175 ml (3/4 cup)olive oil,
4 pinches of saffron,
1 pinch of dry savory,
a good pinch of dry orange zest,
(30 ml) 3tbsp Pastis,
15 ml (1 1/2 tbsp) chopped broad leaved parsley,
salt and pepper.
Rouille:
5 cm piece of a baguette,
4 garlic cloves,
1 red pepper,
1 egg yolk,
90ml (9tbsp) olive oil
Ask your fishmonger for pieces of conger eel cut from near the head. There are too many bones at the tail end. Trim, clean, scale and wash all the fishClean the mussels (see page 138). Peel and rougnly chop the vegetables, seeding the tomatoes. Chop the garlicfinely. Heat half the olive oil in a large pot and gently brown the onions, leeks, celery, fennel, tomatoes and garlic. Add the conger eel and the rest of the fish, apart from whiting and mussels. Shake the pot in order to mix the ingredients. Add 3 l boiling water or fish stock, and bring to the boil. Add the saffron, savoruy and orange zest. After 10 minute add the mussels and whiting and cook for further 5-7 minutes. A minute or so before the cooking is finished, add the Pastis, parsley and remaining olive oil. Return to the boil and stir to blend in the oil. Season to taste. Discard any unopened mussels. To make the rouille, soak the bread in water, then squeeze as dry as possible. Peel the garlic, removing any shoots. wash, dry and seed the pepper. Grind the garlic and pepper together in a blender, then dip tip the resultant purée into a large, deep bowl. Add the crumbled bread and the egg yolk. Beat the misture as for mayonnaise, adding the olive oil drop by drop. Float the garlic croûtons spread with the rouille in the hot soup.
Não lembro em que ano comecei a ler Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Foi em algum momento da época em que eu dançava no Aeroanta, no Rose Bombom e no Madame Satã; comia no Rock Dreams, no Otello e no Oscar; viajava para a Ilhabela e para Campos de Jordão. Na época em que estava começando minha carreira, trabalhando na Folha de S. Paulo. Lembro bem que, a primeira vez em que fui a Paris, procurei reconhecer os bulevares por onde passaram Swann, os Guermantes, Albertine. Creio que já tinha lido os sete volumes, pois acabo de lembrar que a Rosely, que me recebeu tão bem por lá, me contou sobre uma pesquisa mostrando que x intelectuais franceses não tinham terminado de ler a série. Fiquei orgulhosa, mas surpreendida. Para mim, Proust não tem nada de difícil. É puro prazer. Por mim, poderiam ser 14 volumes. Odeio me despedir dos personagens quando estou envolvida com um livro (engraçado, hoje isso acontece menos do que naquela época).
O romance, que tanto me encantou pela capacidade de descrever a sensação quase material que as reminiscências provocam em nosso espírito, há muito é para mim parte dessa massa nebulosa chamada memória distante. Está lá parado, naquelas madrugadas, quando chegava das baladas ou do jornal. Essas lembranças eram mais vivas e, por isso mesmo, mais urgentes (eu ainda sofria de síndrome de abstinência do universo proustiano) quando descobri Dining with Proust em uma viagem a Nova York. Quase morri de satisfação. O livro era o segundo de uma coleção inaugurada por La Cuisine selon Monet (na edição francesa), ou Monet's Table (na americana), de Claire Joyes e Jean-Marie Toulgouat, com prefácio de Joël Robuchon, também da Random. A Mesa de Monet (edição brasileira), eu conhecia bem, pois o tinha dado de presente ao meu namorado da época. Ele havia feito várias receitas do pintor. Eram muito boas. (Por sinal, eu não tenho esse livro, preciso comprá-lo. )
Do livro do Proust, também testamos alguns pratos. Sei ainda qual o gosto da Cassarola de carne que preparamos em Campos de Jordão. Mas foram poucos. Era o princípio desta era em que a gastronomia e o hedonismo passaram a reinar absolutos. Vieram livros, e mais livros, e mais livros de comida, um mais lindo que o outro, um com receitas mais atraentes que o outro. E minha boa intenção de aprender com os mestres acabou soterrada sob a pilha de novidades que até hoje não pára de crescer. Mas, como o Tio Patinhas que gosta de mergulhar na caixa forte cheia de dinheiro ainda que não gaste um tostão, eu adoro ver os meus livros de gastronomia mesmo sem nunca preparar um prato. Não é que eu não cozinhe. Como disse no início deste blog, eu cozinho e, até, bem. Mas improviso, não sigo receitas.
No entanto, mesmo sem ter testado a maioria das receitas, não tenho medo de afirmar que Dining with Proust é um dos livros mais bacanas de minha biblioteca gastronômica. Anne Borrel é uma autoridade no que se refere à obra de Proust e Alain Senderens, um dos chefs mais importantes da França até hoje. Vocês devem se lembrar de ouvir falar, em 2005, de um chef que devolveu suas três estrelas do Guia Michelin e passou a cobrar um terço do preço. Foi Senderens.
A receita de bouillabaisse transcrita acima parece ótima. Especialmente o tal rouille me deixou profundamente curiosa. Acho até que vou testá-lo num próximo evento. Um dia ainda traduzo a receita para vocês. Vou traduzir tudo junto, as em espanhol, as em francês e as em inglês, e fazer um bloco só de receitas. Um dia... Mas, mais do que a receita, o interessante aqui é o acompanhamento. Como todas as receitas de Dinning with Proust, essa vem acompanhada de um trecho de Em busca do tempo perdido, no caso, um trecho de Sodoma e Gomorra, o quarto volume da série. Para facilitar um pouco a vida de vocês, o reproduzo já na tradução de Mario Quintana (Editora Globo):
"Tínhamos na alameda de honra da Raspelière, onde o Sr. Verdurin nos esperava de
pé na escadaria. -- Fiz bem em vestir um smoking -- disse ele, verificando com
prazer que os fiéis tinham o seu, -- já que tenho cavalheiros tão chiques. --E
como eu me desculpasse de meu casaco: 'Ora! está perfeito. Aqui são jantares
entre camaradas. eu podia oferecer-lhe um de meus smokings, mas não lhe
serviria'. (...) -- Vamos, meu caro Brichot, entregue logo as suas coisas. Temos
uma bouillabaisse que não pode esperar."
Como boa parte dos volumes de minha biblioteca de cozinha, este não é um livro de receitas simplesmente. É um estudo sobre a obra de Proust. Uma análise feita a partir do papel que a comida assume nessa obra. Todo mundo, até quem nunca leu Proust, já ouviu falar da madeleine, o bolinho que o narrador comeu com chá e que o transportou à infância, disparando a avalanche de lembranças que constitui o livro. Mas há muito mais comida nessa história. Boa parte das cenas, dos diálogos, ocorrem ao redor de uma mesa, em geral suntuosa e cheia de iguarias. Era assim mesmo que as coisas funcionavam na Paris do fim do século XIX: os nobres, e alguns burgueses com ambições aristocráticas, organizavam lautos jantares para artistas e intelectuais. Os Verdurin representam esses anfitriões. Em Dinning with Proust Anne Borrel comenta que o personagem Swann, assim como Proust, era um dos poucos que via tudo isso com um olhar crítico, pois as outras "almas artísticas" que circulavam por esses salões "se levavam muito à sério". Acho que por isso gostei tanto de Em busca do tempo perdido. Eu mesma, muito garota, mas metida em círculos de "intelectuais" (alguns tão jovens quanto eu), sentia que, nos salões (ou porões) por onde eu andava, era impressionante como as pessoas se levavam a sério. Como Swann e o próprio Proust, eu não conseguia dispensar a vida social. Aliás, não consigo até hoje. Mas, graças a Deus, acho que hoje as pessoas se levam menos a sério, e eu não perco muito tempo ou pelo menos fígado, com gente que acha que sabe tudo. Bom, falando em se levar a sério, isto é um blog de comida, e de livros, mas mais de comida... Imagino que bem poucos estejam interessados em minhas considerações sobre os salões (ou porões) por onde passei.
Voltando ao livro, parece que sempre houve uma ligação forte entre literatura e gastronomia -- aliás, entre artes e gastronomia. Esse monte de frescuraiada, que hoje a gente vê em qualquer pessoa com dois tostões para comprar um vinho, seja qual for seu nível cultural, há muito é comum entre escritores e artistas. E este livro nos ajuda a entender um pouco esse fenômeno. Bom, ficou tarde, então, falo da bouillabaisse canadense e da versão da Ofélia em um próximo post.
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